ALTERGLOBALIZAÇÃO
O que é, afinal, a democracia? 1
É preciso questionar a democracia para podermos reiventá-la e não permitir que seja pervertida pelo poder econômico e financeiro que não é nem eleito pelo voto popular nem controlado pelos cidadãos
José Saramago
Em seu livro Política2, Aristóteles começa por nos dizer o seguinte: “Na democracia, os pobres são reis porque são mais numerosos e porque a vontade da maioria tem a força da lei”. Numa segunda passagem, ele parece começar por restringir o alcance dessa primeira frase, em seguida o amplia, completando-o e terminando por estabelecer um axioma: “A eqüidade, no âmbito do Estado, exige que os pobres não detenham, de forma alguma, mais poder do que os ricos, que não sejam os únicos soberanos, mas que todos os cidadãos o sejam em proporção a seu número. Estão aí as condições indispensáveis para que o Estado garanta com eficácia a igualdade e a liberdade.”
Aristóteles nos ensina que os ricos, ainda que participem com toda legitimidade democrática do governo da Polis, continuarão sendo sempre uma minoria devido a uma proporcionalidade incontestável. Por um lado, ele está certo: desde os tempos mais remotos que possamos evocar, os ricos nunca foram mais numerosos que os pobres. Apesar disso, os ricos sempre governaram o mundo, ou manipularam as pessoas que o governavam. Mais do que nunca, essa é uma constatação atual. Note-se, de passagem, que, para Aristóteles, o Estado representa uma forma superior de moralidade...
O obstáculo de Roma
Qualquer manual de direito constitucional nos ensina que a democracia é “uma organização interna do Estado por meio da qual a origem e o exercício do poder político cabe ao povo, permitindo essa organização ao povo governado que também governe, através de seus representantes eleitos”. Aceitar definições como essa, de tal pertinência que quase se confunde com as ciências exatas, corresponderia, quando transpostas para nossa era, a não levar em conta a infinita graduação de estados patológicos com os quais, a qualquer momento, nosso corpo pode ser confrontado.
Em outras palavras: o fato de que a democracia possa ser definida com muita precisão não significa que ela realmente funcione. Uma breve incursão na história das idéias políticas leva a duas observações, muitas vezes relegadas sob o pretexto de que o mundo muda. A primeira para lembrar que a democracia surgiu em Atenas, por volta do século V antes de Cristo; ela pressupunha a participação de todos os homens livres no governo da cidade; baseava-se na forma direta e os cargos eram efetivos, ou atribuídos, por meio de um sistema misto de sorteio e de eleição; e os cidadãos tinham o direito de voto e o de apresentar propostas nas assembléias populares.
É, no entanto - esta é a segunda observação - em Roma, a sucessora dos gregos, é que o sistema democrático não conseguiu se impor. O obstáculo veio com o poder econômico colossal de uma aristocracia latifundiária que via na democracia um inimigo direto. Apesar do risco de qualquer tipo de extrapolação, seria possível deixar de questionar se os impérios econômicos contemporâneos não seriam também adversários radicais da democracia, ainda que mantenham as aparências?
Abdicação cívica
As instâncias do poder político tentam desviar nossa atenção do óbvio: dentro do próprio mecanismo eleitoral, encontram-se em conflito uma opção política, representada pelo voto, e uma abdicação cívica. Não é fato que, no momento exato em que a cédula é introduzida na urna, o eleitor transfere para outras mãos – sem qualquer contrapartida, salvo promessas feitas durante a campanha eleitoral – a parcela de poder político que detinha até então enquanto membro da comunidade de cidadãos?
O papel de advogado do diabo que assumo pode parecer imprudente. Mais um motivo para que examinemos o que vem a ser a nossa democracia e qual a sua utilidade, antes de pretendermos – uma obsessão de nossa época – torná-la obrigatória e universal. Essa caricatura de democracia que, como missionários de uma nova religião, procuramos impor ao resto do mundo não é a democracia dos gregos, mas um sistema que os próprios romanos não teriam hesitado em impor em seus territórios. Este gênero de democracia, deteriorado por mil parâmetros econômicos e financeiros, teria conseguido, sem dúvida alguma, mudar a opinião dos latifundiários do Lácio, que se teriam tornado os mais ferrenhos dos democratas...
Pode passar pelo espírito de alguns leitores uma desagradável suspeita sobre minhas convicções democráticas, tendo em vista minhas notórias posições ideológicas3... Defendo a idéia de um mundo verdadeiramente democrático que se tornaria realidade dois mil e quinhentos anos depois de Sócrates, Platão e Aristóteles. Essa quimera grega de uma sociedade harmoniosa, que não se dividiria em senhores e escravos, tal como a concebem os cândidos espíritos que ainda acreditam na perfeição.
A vontade política e o voto
Poderão dizer: mas as democracias ocidentais não são censitárias4, nem racistas e o voto do cidadão rico e branco tem o mesmo valor nas urnas que o do cidadão pobre e de pele morena. Se confiássemos em tais aparências, teríamos atingido o supra-sumo da democracia.
Sob o risco de diminuir essas paixões, eu diria que as realidades brutais do mundo em que vivemos tornam ridículo esse cenário idílico e que, de uma ou de outra maneira, acabaremos por cair num organismo autoritário dissimulado sob os mais belos paramentos da democracia.
O direito de voto, por exemplo, expressão de uma vontade política, também é um ato de renúncia a essa mesma vontade, pois o eleitor a delega a um candidato. O ato de votar, pelo menos para uma parcela da população, é uma forma de renúncia temporária à ação política pessoal, discretamente adiada até as eleições seguintes, quando os mecanismos de delegação de poder voltarão ao ponto de partida para tudo recomeçar de novo.
Vínculos reveladores
Essa renúncia pode constituir, para a minoria eleita, o primeiro passo de um mecanismo que muitas vezes autoriza, apesar das vãs esperanças dos eleitores, a determinação de objetivos que nada têm de democráticos e podem até ser autênticas ofensas à lei. Em princípio, não ocorreria a ninguém eleger como representantes no Parlamento pessoas corruptas, ainda que a triste experiência nos ensine que as altas esferas do poder, no plano nacional e internacional, são ocupadas por criminosos desse tipo ou por seus representantes. Nenhum exame ao microscópio dos votos depositados nas urnas permitiria tornar visíveis os vínculos reveladores das relações entre os Estados e os grupos econômicos cujas ações ilícitas – até de guerra – conduzem nosso planeta rumo à catástrofe.
A experiência confirma que uma democracia política que não se baseia numa democracia econômica e cultural de pouco adianta. Desprezada e relegada a ser o depositário de fórmulas obsoletas, a idéia de uma democracia econômica deu lugar a um mercado triunfante que beira a obscenidade. E a idéia de uma democracia cultural foi substituída por uma massificação industrial das culturas, não menos obscena, um pseudo-caldeirão que serve apenas para mascarar a predominância de algumas delas.
Democracia paralisada
Pensávamos ter avançado, mas, na realidade, recuamos. Falar de democracia se tornará cada vez mais absurdo se nos obstinarmos em identificá-la com instituições que respondem por partidos, parlamentos ou governos, sem proceder a um exame do uso que estes últimos fazem do voto que lhes permitiu o acesso ao poder. Uma democracia que não faz autocrítica está condenada à paralisia.
Não concluam que sou contra a existência de partidos: sou militante de um deles. Nem pensem que abomino parlamentos: eu os apreciaria mais se se dedicassem mais à ação do que à palavra. E também não imaginem que sou o inventor de uma receita mágica que permitirá aos povos que vivam felizes sem governos. O que me recuso a admitir é que só seja possível governar e desejar ser governado segundo os modelos democráticos vigentes, incompletos e incoerentes.
Qualifico-os assim porque não vejo outra forma de designá-los. Uma verdadeira democracia que, como um sol, inundasse todos os povos com sua luz, deveria começar pelo que temos à mão, ou seja, o país em que nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua em que moramos.
Se essa condição não for respeitada – e não o é – todos os raciocínios acima citados – ou seja, o fundamento teórico e o funcionamento experimental do sistema – serão viciados. Purificar as águas do rio que atravessa a cidade de nada adiantará, se o foco da contaminação se encontra na nascente.
Eleição sem transformação
A questão principal que se coloca para qualquer tipo de organização humana, desde que o mundo é mundo, é a do poder. E o principal problema é o de identificar quem o detém, de verificar por que meios o conseguiu, o uso que dele faz, os métodos que utiliza e quais são suas ambições.
Se a democracia realmente fosse o governo do povo, para o povo e pelo povo, terminaria o debate. Mas não é esse o caso. E só um espírito cínico se arriscaria a afirmar que o mundo em que vivemos vai às mil maravilhas.
Também se diz que a democracia é o menos ruim dos sistemas políticos e ninguém ressalta que essa constatação resignada de um modelo que se contenta em ser “o menos ruim” pode constituir um freio à busca por algo de “melhor”.
O poder democrático é, por sua natureza, sempre provisório. Depende da estabilidade das eleições, do fluxo das ideologias e dos interesses de classe. É possível ver nele uma espécie de barômetro orgânico que registra as variações da vontade política da sociedade. Porém, de maneira flagrante, só se computam as alternâncias políticas aparentemente radicais, que resultam em mudanças de governo, mas que não são acompanhadas por transformações sociais, econômicas e culturais tão fundamentais quanto o resultado da eleição faria supor.
Operação estética barata
Na realidade, chamar um governo “socialista”, ou “social-democrata”, ou ainda “conservador”, ou “liberal”, e denominá-lo “poder” não passa de uma operação estética barata. Trata-se de fingir dar nome a algo que não está ali, onde querem nos fazer crer que esteja. Pois o poder, o verdadeiro poder, está em outro lugar: é o poder econômico. É aquele do qual percebemos o contorno em filigrana, mas que nos foge quando tentamos aproximar-nos e contra-ataca se entende que desejamos limitar sua influência, submetendo-o às regras do interesse geral.
Em termos mais claros: os povos não elegeram seus governos para que estes os “ofereçam” ao mercado. Mas o mercado condiciona os governos para que estes lhe “ofereçam” seus povos. Em nossa época de globalização liberal, o mercado é o instrumento por excelência do único poder digno desse nome: o poder econômico e financeiro. Este não é democrático, pois não foi eleito pelo povo, não foi gerado pelo povo e, principalmente, não tem por objetivo a felicidade do povo.
Governo dos ricos
Aqui, apenas enuncio verdades elementares. Os estrategistas políticos, de toda e qualquer filiação partidária, impuseram um silêncio prudente para que ninguém ousasse insinuar que continuamos cultivando a mentira e aceitamos ser seus cúmplices.
O chamado sistema democrático parece, cada vez mais, um governo dos ricos e, cada vez menos, um governo do povo. Impossível negar o óbvio: a massa de pobres convocada a votar jamais é chamada a governar. Na hipótese de um governo formado pelos pobres, em que estes representassem a maioria – como Aristóteles o imaginou, em sua Política –, eles não disporiam de meios para modificar a organização do universo dos ricos, que os dominam, os vigiam e os oprimem.
A pretensa democracia ocidental entrou numa etapa de transformação retrógrada que ela é incapaz de deter e cujas conseqüências previsíveis serão sua própria negação. Não é necessário que alguém assuma a responsabilidade de liquidá-la; ela própria se suicida diariamente.
O tabu da democracia
O que fazer? Reformá-la? Sabemos que reformar, como bem disse o autor do Il Gattopardo5 , nada mais é do que mudar o necessário para que nada mude. Renová-la? Que época do passado teria sido suficientemente democrática para que valesse a pena a ela retornar para, a partir dali, reconstruir com novos materiais aquilo que estivesse no caminho da perdição? A da antiga Grécia? A das repúblicas mercantis da Idade Média? A do liberalismo inglês do século XVII? A do século do Iluminismo francês? As respostas seriam tão fúteis quanto as perguntas...
O que fazer então? Paremos de considerar a democracia como um valor adquirido, definido de uma vez por todas e intocável para sempre. Num mundo em que estamos habituados a debater qualquer assunto, um único tabu persiste: a democracia. Salazar (1889-1970), o ditador que governou Portugal por mais de quarenta anos, afirmava: “Não se questiona Deus, não se questiona a pátria, não se questiona a família”. Nos dias de hoje, Deus é questionado, a pátria é questionada e, se não questionamos a família, é porque ela própria se encarrega de fazê-lo. Mas não se questiona a democracia.
Então, digo: questionemos a democracia em todos os debates. Se não encontrarmos um meio de a reinventar, não perderemos apenas a democracia, mas a esperança de ver um dia os direitos humanos respeitados neste planeta.. Isso seria o fracasso mais estrondoso de nossos tempos, o sinal de uma traição que marcaria a humanidade para sempre.
(Trad.: Jô Amado)
1 - Nota da Redação: Como não recebemos a versão original deste artigo, o texto que aqui publicamos é uma tradução da versão espanhola para o português do Brasil.
2 - Pode ser consultada a edição francesa, La politique, ed. Vrin, tradução de J. Tricot, Paris, 1982.
3 - José Saramago é filiado ao Partido Comunista português.
4 - N.T.: No império romano, o cidadão deveria pagar o censo para ser eleitor ou elegível.
5 - Romance póstumo do escritor siciliano Giuseppe Tommasi di Lampedusa (1896-1957), publicado em 1958, com edição francesa, de 1959, pela editora Seuil, Paris. É atribuída a Lampedusa a célebre frase: “É preciso mudar tudo para que nada mude.”
março 2002
CULTURA
A justiça, a democracia e os sinos
“E contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica”
José Saramago
Impossibilitado de comparecer a Porto Alegre, ao II Forum Social Mundial, o escritor português enviou este texto, cuja leitura marcou a plenária de encerramento
Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.”
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor
Fonte: http://diplo.org.br/_Jose-Saramago_